“Que a arte nos aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba (...)”
Com frequência leio romances,
contos e crônicas. Para além do prazer da leitura em si, do mergulho em um
mundo construído por outrem, passei a procurar abstrair reflexões aos meus
olhos pertinentes, bem como correlações com os diversos papéis que exercemos em
nossas vidas. Recentemente, uma obra prima do mestre da tragédia causou-me inquietação
e me fez refletir muito sobre os sentimentos, sobre as paixões que nos movem...
Muito mais do que nossa “inteligência”, penso que são elas que diferenciam
nossa espécie, por elas somos capazes de ações sublimes e atrozes... São elas
que nos dão senso de propósito, por elas vivemos, por elas lutamos, por elas
matamos e morremos...
Em Otelo, Shakespeare demonstra o
poder (neste caso destruidor) de uma pessoa hábil e conhecedora da natureza
humana. Nessa obra, a vil personagem, chamada Iago, demonstra como transformar
“virtude em piche”, como aproveitar-se da bondade de alguém para tecer uma teia
de intrigas para destruí-la... Em sua primeira grande lição, ele afirma:
“quando o desejo dos demônios é vestir os mais negros pecados, eles insinuam-se
primeiro com vestimentas angelicais”. Em outras palavras, ações como essas são
sorrateiras e dissimuladas. Quantas vezes já fomos iludidos por conversas
bonitas, por pessoas que se aproximam para falar o que queremos ouvir (não o
que precisamos escutar)... Quantas vezes fomos vítimas de pessoas que se
passaram por amigos para nos apunhalar... Quantas vezes fomos sutilmente usados
como instrumentos para que outro atingisse o que queria...
Confesso que a reflexão mais
profunda sobre este tema causou-me forte angústia e ansiedade por duas razões:
a primeira tem a ver com aquilo que costumo chamar de “ânsia por validação”, um
monstro que se alimenta de uma necessidade natural de pertencimento que todos
nós temos, mas que tem o poder de transformá-la em algo patológico, em que o
“parecer” toma uma importância desproporcional em nossas vidas, podendo vir a
subjugar ou, até mesmo, a anular quem de fato “somos” e o que de fato
“sentimos”. Para além de vários outros efeitos decorrentes do nosso nível de dependência
da validação alheia, o fato é que, quanto maior for esta necessidade, mais
suscetíveis estaremos a cair no ardil dos lobos que se vestem de cordeiros. Já a segunda aflição tem a ver com o extremo
oposto, pois comungo do resultado de uma pesquisa de Harvard intitulada Study
of Adult Development, segundo a qual o principal fator capaz de nos manter
felizes e saudáveis é a qualidade de nossas relações. Mas como construir
relações verdadeiras se nos vemos obrigados a nos manter sempre alertas e desconfiados?
Para este dilema, compartilho com vocês minha humilde opinião... Para não se
entrar em paranóia, nem se privar – por receio – da criação de vínculos
fundamentais às nossas vidas entendo ser fundamental atenção a dois aspectos: um
deles é a constância. Arrisco a afirmar que é impossível alguém manter laços
por período prologando de tempo se não for por razões genuínas. A segunda, mas
não menos importante, tem a ver com atenção necessária ao “samba de uma nota
só”... Me explico; não é natural que uma pessoa sempre concorde conosco, sempre
se mostre compreensiva, sempre se esforce a falar o que queremos ouvir. Afirmo,
sem medo de errar, que algo assim NUNCA é verdadeiro e, senão decorrente de
alguma patologia, muito provavelmente traz consigo interesses ocultos nada virtuosos
e, em geral, inconfessáveis...
De volta à rede de intrigas arquitetada
por esta instigante personagem de Shakespeare, é impossível não mencionar a
percepção da importância da alcova, da
morada onde o diabo habita; os Detalhes... Após arar e semear em sua vítima o
sentimento desejado, levando-a a turvar sua visão e a confundir sua capacidade
de discernimento, Iago cria diversas situações minuciosamente planejadas para
corroborar sua narrativa. “Detalhes insignificantes, tênues como o ar,
apresentam-se aos enciumados sob a forma de confirmação”, afirma. Ardiloso, foi
capaz de conseguir valer-se até das virtudes mais sublimes de uma pessoa para
atingir o seu intento... Após fustigar a desconfiança e o ciúme de Otelo em
relação a Desdêmona, sua esposa, Iago aproveitou-se do perfil bondoso dela, para
que intercedesse por um amigo junto a Otelo que, envenenado pelas prévias
insinuações de Iago e tomado pelo fel da dúvida, no lugar de nobreza e bondade,
enxergava na ação de sua amada esposa uma prova de traição... Antes de
subestimar esse flanco, comum a todos nós humanos, supondo que ele seria afeito
apenas aos ingênuos, garanto-lhes: nem Otelo, nem tantos outros que já sofreram
desse mal nem de longe podem ser considerados como tal. Assumir essa
fragilidade é, na verdade, o primeiro passo para ter-se alguma defesa contra
esta que é a mais humana de todas as vulnerabilidades; em situações de stress,
um confronto entre emoção e razão não é uma luta, é um massacre desta última. Não
é à toa que decisões tomadas quando estamos “de cabeça quente” não raro são as
piores, dentre as várias possíveis... Por isso, reafirmo, reconhecer um estado
de ansiedade, de afetação por algum sentimento intenso é o primeiro passo para
tentar mitigar seus efeitos e, assim, nos permitir à volta ao nosso bom senso. Mas
será que apenas isso basta? Diria que tal capacidade não é uma condição
suficiente, em si, não obstante necessária para desenrolar uma série de
reflexões capazes de nos serenar o espírito e trazer à razão. Vejamos... Se
Otelo tivesse reconhecido seu estado de ciúmes, certamente se daria conta de
que o comportamento de Desdêmona com Cássio, seu amigo, não era uma exceção,
mas a regra de como ela agia... Tal consciência provavelmente o faria refletir
sobre a origem de suas desconfianças, de onde haviam partido... E, ao seguir esta trilha, chegaria rapidamente
às insinuações infundadas de Iago... Isso o faria ponderar sobre quem era Iago,
que tipo de relação possuíam, quão constante era, quais interesses aquele vínculo
implicava... Paralelamente, Otelo se veria impelido a recorrer a outros elos,
outras relações, vez que ainda não podia confiar em seus próprios olhos, nem
tampouco nos de Iago... Naturalmente, apelaria a pessoa próxima e de confiança
que, despida das razões escusas de Iago, tenderia a serenar o estado de Otelo,
devolvendo-lhe sua capacidade de discernimento... Agindo assim, o fim da
história seria bem diferente...
Face todo o exposto, para finalizar
esta breve reflexão, rogo para que a história não reescrita de Otelo, não nos
sirva tão somente como fonte de regozijo pela leitura de uma obra prima,
presente em nossa literatura. Mas que também se preste a nos permitir o
exercício da elucubração e o desenvolvimento de habilidades de defesa suficientes
para que tragédias como a de Otelo não sejam nada, além de histórias...
AGL Júnior